CARF, entre a tragédia e a farsa, por Ricardo Fagundes da Silveira e Wilson Luiz Müller

por Agência Sindifisco Floripa

Em 24/04/2023

Instituições como o CARF são mecanismos que produzem um vácuo silencioso de sofrimento e morte, não sentidos, não visualizados e não mensurados

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa…”

Nós, simples mortais, e nosso ministro da fazenda Fernado Haddad, um admirador do filósofo alemão Georg W F Hegel (1770-1830), teremos a oportunidade de colocar à prova a clássica frase que marca a abertura do 18 Brumário de Luís Bonaparte, de outro alemão ainda mais conhecido, Karl Marx (1816-1883).

Quem leu a obra sabe que, apesar de famosa, a frase que trata as “coincidências” históricas colocando a versão mais recente em forma de caricatura, nem de longe resume a essência do texto marxista. Serve, todavia, para explorar outras comparações históricas.

Se a história francesa separa, no espaço de 47 anos, dois golpes de Estado, envolvendo dois Napoleões (tio e sobrinho), na história brasileira dois eventos pouco conhecidos se repetem no espaço de 100 anos.  Os eventos nacionais são discretos, contudo, retratam a longevidade e os efeitos sociais do patrimonialismo brasileiro.

Por trás dessa possibilidade residem relações econômicas, sociais, números, fatos e atores políticos associados a um mecanismo, um órgão chamado Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – o CARF. Para os incautos ou noviços no assunto, o CARF merece uma apresentação:

  • Um órgão interno do Ministério da Fazenda que faz a revisão administrativa das autuações fiscais da Receita Federal contra potenciais sonegadores;
  • Concentra a 2ª. e 3ª. instâncias de revisão administrativa, sendo que os processos que chegam ao mesmo já passaram, obrigatoriamente, por uma 1ª. instância chamada Delegacias de Julgamentos – DRJs.
  • Embora seja um órgão da administração pública, metade dos julgadores do CARF são indicados por confederações empresariais (CNI, CNC, CNF, CNT, CNA e CNS), peculiaridade que não existe em nenhum outro país do mundo;
  • Durante 48 anos, entre 1972 e abril/2020, se um processo terminasse empatado nas turmas de julgadores, geralmente compostas por 8 conselheiros (4 da fazenda e 4 dos empresários), um voto de qualidade (minerva) desempatava a decisão. Esse voto de qualidade era sempre proferido por um servidor da fazenda;
  • Se as decisões deste órgão forem desfavoráveis aos potenciais sonegadores, estes sempre podem recorrer ao judiciário;
  • Se as decisões são favoráveis aos autuados, porém, a União não pode recorrer ao judiciário;
  • Em abril/2020, uma lei sancionada por Bolsonaro acabou com o voto de qualidade e os empates passaram a favorecer os autuados;
  • Essa mudança representou prejuízos à fazenda nacional no montante de R$24,77 bilhões em 2022. Se estivesse em vigor em 2018 e 2019, estas perdas alcançariam R$71,62 bilhões e R$70,53 bilhões, respectivamente;
  • Em janeiro/2023, o novo governo publicou a Medida Provisória 1160/23, que determina o retorno do Voto de Qualidade ao órgão;
  • Nas três instâncias há um estoque de, aproximadamente, R$1,2 trilhão de reais aguardando julgamento. Destes, R$1 trilhãosomente no CARF;
  • Mantidas as proporções das decisões do ano de 2022, apenas com os empates sem voto de qualidade, as perdas para o erário alcançarão R$240 bilhões;
  • O julgamento nas instâncias administrativas (DRJs e CARF) dura, em média, 9 anos;[ii]
  • As grandes empresas quando perdem, via de regra, recorrem ao judiciário. Neste, os processos ficam, em média, mais 9 anos e 9 meses[iii]. Ou seja, no Brasil, as disputas envolvendo sonegação fiscal demoram mais de 18 anos;
  • Essa morosidade inviabiliza o recebimento desses recursos. Em 2016 a Dívida Ativa da União totalizava R$1,925 trilhões. Destes, R$1,844 trilhões era dívida ativa tributária dos quais, R$1,494 trilhão foram baixados como títulos podres no Balanço Geral da União de 2017;[iv]
  • Em junho/2022, o estoque do CARF era de R$1,05 trilhão em 92.289 processos. Destes, 1.412 processos, com valores superiores a R$100 milhões, concentravam R$781 bilhões, 74% do montante;
  • Entre 2013 e 2017, os montantes julgados favoráveis aos contribuintes corresponderam a 43% do total julgado e os outros 57% foram favoráveis à fazenda;
  • Passados 12 meses do julgamento definitivo no CARF, dessa parcela favorável à fazenda, apenas 3,74% são recolhidos, parcelados ou compensados;
  • Quando considerados as autuações de grandes contribuintes, esse percentual é próximo de 0% (zero). O setor de Bancos e Holdings financeiras, por exemplo, recolheu 0,32% de R$ R$22,6 bilhões julgados favoráveis à fazenda em 2017.

Quando comparado com outros países, o contraste é evidente:

  1. Não se conhece um único país onde associações empresariais indicam julgadores para órgãos de litígio tributário;
  2. Segundo relatório da OCDE de 2015[v], de 56 países analisados, em 44 o processo administrativo dura no máximo um (1) ano; em dois países possuem limite legal de 3 a 5 anos e em sete países a imposição de prazos não é relevante;
  3. De 27 países citados na revista britânica The Law Review[vi], apenas o Brasil tem 3 instâncias administrativas; 22 países têm apenas 1 (uma); outros 5 países têm 2(duas) instâncias.

Um retorno ao passado

A substituição da MP 1160/23 por um Projeto de Lei é uma derrota política do Governo Lula III e também da sociedade. O principal agente político responsável por esse revés é, sem sombra de dúvidas, o atual presidente da Câmara dos Deputados: Arthur Lira.

Para melhor compreendermos a lógica que envolve esse evento, temos que retornar um século, em 1924.  A origem dos precursores do CARF, os Conselhos de Contribuintes, decifra os interesses e o mecanismo que Lira insiste em manter de pé.

Há 100 anos a Lei 4.783/1923, que aperfeiçoava a Lei 4.625/1922, criava o Imposto de Renda no Brasil. Este tributo redefiniu o pacto federativo brasileiro e, ainda hoje, é crucial na organização do Estado, da vida econômica e social país. Com uma amplitude que alcançava todos os setores econômicos e classes sociais, a criação do novo imposto estava vinculada a uma profunda crise fiscal do Estado.

A criação do Imposto de Renda não foi um evento pacífico e tranquilo. Imaginem, num relance, as dificuldades para instituição de um tributo com tamanha relevância nos dias atuais.

A historiadora e cientista social Priscila Gonçalves[vii] fez uma reconstituição dos
debates realizados na Câmara dos Deputados durante as três primeiras décadas do século passado e destaca, com rigor científico admirável, o contexto que faz surgir o Imposto de Renda no Brasil. Um modelo “ultrafederalista” que privilegiava os estados na divisão das rendas públicas na primeira constituição (1891) resultava em contínuos déficits orçamentários da União, dependente de um sistema herdado do Império e baseado na arrecadação de tarifas aduaneiras. Nas falas e intervenções dos parlamentares que defendiam a criação do novo imposto predominavam a “preocupação com a bancarrota da União” (GONÇALVES, 2014, p. 170).

Uma figura central na instituição e implementação do Imposto de Renda foi José Leopoldo de Bulhões Jardim (1856–1928). Deputado Geral no Império e também Deputado Federal na Constituinte de 1891, Bulhões Jardim foi Ministro da Fazenda de Rodrigues Alves (1902-1906), elegeu-se senador pelo estado de Goiás em 1909 e renunciou ao mandato em 1910 para ocupar novamente o Ministério da Fazenda no governo Hermes da Fonseca (1910-1914).

Em 1914, oito anos antes da aprovação da primeira lei do Imposto de Renda, compareceu à Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados para defender a constitucionalidade do novo tributo. (GONÇALVES, 2014, p. 117).

O papel histórico de Bulhões Jardim não deve ser visto, no entanto, somente pela relevância dos cargos que ocupou na república velha. Homem de confiança dos financistas do período, são dele também iniciativas que criam as primeiras lacunas fiscais do IR em terras brasileiras. Uma delas é tão explícita, que quase inacreditável.

No parágrafo 7º do artigo 3º da Lei 4.783/1923, aparece a seguinte pérola:

“As declarações dos contribuintes estarão sujeitas à revisão dos agentes fiscaes, que não poderão solicitar a exhibição de livros de contabilidade, documentos de natureza reservada ou esclarecimentos, devassando a vida privada.”

Proteção corporativa tão contraditória não sobreviveria por muito tempo, mas para salvaguardar os interesses das oligarquias, Bulhões Jardim criou outro mecanismo, mais sofisticado, que sobrevive por um século: os conselhos de contribuintes. Este órgão, que não estava previsto nas leis 4.625/1922 e 4.783/1923, foi criado pelo Decreto 16.580/1924 e nele se instituía a criativa e aleivosa presença de representantes das associações empresariais nos julgamentos de autuações fiscais contra grandes empresas.

Bulhões Jardim se tornaria o primeiro presidente do 1º Conselho de Contribuintes e juntamente com um ex-ministro da Agricultura, João Gonçalves Pereira Lima, na vice-presidência, conduziu os primeiros passos daquela instituição que seria a precursora do atual CARF

Em 1927 seria criado o 2º Conselho de Contribuintes pelo Decreto 5.157/1927, responsável pelo julgamento dos recursos contra as autuações do imposto sobre vendas mercantis e seu presidente era Mário Foster Vidal da Cunha Bastos, presidente da Federação de Seguradores e Diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro (MARTINS, 2010, p. 81).

Inspirados na estrutura das Juntas da Real Fazenda, instituição pombalina do Império português, os conselhos são exemplos clássicos do patrimonialismo transplantado do regime monárquico e escravocrata para a república brasileira.

Durante 48 anos esse modelo de órgão, com metade de julgadores das corporações empresariais e outra metade do Ministério da Fazenda, sobreviveu incólume. Somente em 1972, durante o governo Médici, teve suas bases parcialmente contrariadas. As corporações empresariais mantiveram sua posição privilegiada dentro do Estado, mas seu poder seria reduzido com a criação do Voto de Qualidade, garantido à fazenda, em casos de empates.

Presente no Decreto 70.235/72, esse dispositivo prevaleceu por outros cabalísticos 48 anos até abril de 2020 quando, as “elites do atraso” de Jessé Souza se associam a Bolsonaro e resolvem que era hora de voltar à velha república.

Ainda não temos dados e levantamentos que estimem os efeitos da tragédia orçamentária e social causadas nas cinco primeiras décadas de funcionamento do mecanismo (1924-1972) e mesmo as pesquisas empíricas sobre a segunda (1972-2020) são ainda insuficientes para mensurar, com razoável segurança, os impactos ao erário e a atrofia causada em políticas públicas.

Como a farsa se repetirá?

Se não é possível medir a tragédia, tal sorte não acompanhará a farsa. Passados 100 anos da alquimia que dissimulava juntas da real fazenda rotuladas como Conselho de Contribuintes, além das claras projeções de perdas ao erário resta identificar o Bulhões Jardim de nosso tempo.

O patrimonialismo brasileiro tem muitas faces e intermediários. Neste caso, a busca por um retrocesso que até a ditadura militar não tolerou é encampada pela atuação discreta e eficiente de Arthur Lira.

Lira já foi objeto de autuações da Receita Federal e teve que se defender no CARF,[viii] mas sua evidente liderança política nas últimas décadas permite deduzir que esses detalhes têm menor relevância no tratamento político que ele destina ao tema. Sua atuação sobre a matéria demonstra uma defesa clara de interesses e posições ideológicas muito presentes no parlamento brasileiro. Senão vejamos:

  • Apesar da emenda jabuti, apresentada na MP 899/2019, ter sido de autoria do deputado Hildo Rocha (MDB-MA), foi Lira quem patrocinou a medida que acabou com o voto de qualidade. [ix]
  • Mesmo com o apoio dos partidos da base do governo Lula para sua recondução à presidência da Câmara para o biênio 2023-2024 e apesar da defesa enfática do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pelo retorno do Voto de Qualidade, Lira deu declarações públicas que “do jeito que era, era pior”.[x]
  • Mesmo com o governo cedendo à pressão e fechando um acordo temerário (porque desestimula claramente o recolhimento voluntário) com representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e um grupo think thank de empresários, chamado “Esfera Brasil”[xi], Lira se manteve irredutível e simplesmente travou a tramitação da MP 1160 no Congresso. [xii]

As medidas que ameaçam o secular mecanismo de privilégios implementado por Bulhões Jardim geram inquietação entre setores empresariais, num deles, as disputas alcançam R$95 bilhões.[xiii]Expõem também a fragilidade de instituições republicanas como a OAB que, movida por interesses de grupos econômicos específicos, chegou a propor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, negociar um “acordo” sobre o tema e levá-lo ao ministro relator da matéria. [xiv]

Apesar da elogiável postura do ministro da fazenda, expondo publicamente o mecanismo que, diferente de qualquer outro país, permite a representantes das corporações empresariais cancelarem autuações fiscais[xv], os jornais noticiam que o governo Lula cedeu a Lira e decidiu transformar a MP do CARF em Projeto de Lei. [xvi]

O intelectual, professor e político Fernando Haddad vive, nestes dias, a realidade nua e crua de um dos seus principais objetos de pesquisa: o patrimonialismo. Sob a ameaça, e mesmo chantagem, de não alcançar maioria parlamentar que viabilize o terceiro mandato de Lula tem que se desviar do enorme pântano que compõem variados interesses e mecanismos das oligarquias na questão tributária.

Resta saber como a farsa se confirmará. O Projeto de Lei terá regime de urgência? Irá à votação? Se votado, qual mecanismo prevalecerá? O modelo monárquico, copiado das Juntas da Real Fazenda, que vigorou entre 1924 e 1972 e foi ressuscitado com a atuação de Lira em 2020? Ou o modelo da ditadura, um pouco menos injusto, mas que ainda privilegia a representação das corporações empresariais?

As oligarquias e sua versão atualizada, os Faria Limers, aguardam ansiosamente pelo desenrolar dos fatos.

Na “história não há espaço para coincidências”.[xvii] O CARF e os conselhos de contribuintes são heranças de um país dominado pelo patrimonialismo de oligarquias acostumadas (e enriquecidas) com o trabalho escravo, onde a miséria era condição natural dos explorados. Para estas, na monarquia ou na república, a ação ou inação do Estado se justificam segundo os interesses de acumulação e domínio.

Num país que naturaliza desigualdades e prolonga os efeitos da escravidão, impressiona a indiferença das elites com o fosso sob o qual transitam. Os R$24,77 bilhões cancelados com os empates de 2022 no CARF seriam suficientes para pagar, por exemplo, 82 milhões e 500 mil consultas ao preço de R$300,00 cada.

Imaginem o prejuízo ao país e a seu povo, causado pela presença privada neste órgão e nos seus precursores durante seus 100 anos de existência!

Instituições como o CARF são mecanismos que produzem um vácuo silencioso de sofrimento e morte, não sentidos, não visualizados e não mensurados. Todos nós, que ficamos inertes às contradições que suportam este tipo de instituição, somos cúmplices pela tragédia ou pela farsa que delas resultam!

Aos simples mortais sobra a esperança naquela parte do texto marxista que, extrapolando a caricatura das “coincidências”, assevera que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado….”

Resta acreditar que o conhecimento pode atropelar mecanismos sórdidos!

*Com informações de Jornal GGN

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